Assunto: Uma lei aprovada pelo Congresso durante a pandemia livrou as igrejas da cobrança de até R$ 1,2 bilhão em tributos.

Os dados inéditos da Receita Federal foram obtidos pelo UOL via Lei de Acesso à Informação.

Trata-se de tributos como contribuição previdenciária e contribuição social sobre o lucro, que deixaram de ser cobrados das igrejas após uma mudança na Lei 14.057.

O articulador do ajuste foi o deputado federal David Soares (ex-DEM, atual União Brasil), filho do pastor R.R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus.

A lei tem impacto retroativo e, no médio prazo, pode levar à anistia de dívidas antigas — entre elas, cifras milionárias como a da Graça de Deus.

Ela é uma das cinco maiores organizações religiosas devedoras de impostos à União. Hoje, a dívida ativa da igreja é de R$ 89 milhões.

Devido ao sigilo fiscal, a Receita revelou apenas os valores totais e os tipos de impostos que foram “anistiados”, mas não os CNPJs diretamente beneficiados com a lei.

David e R.R. Soares foram procurados pelo UOL por telefone e por email em diversas ocasiões, mas não retornaram os pedidos de entrevista.

A Constituição já isenta organizações religiosas do pagamento de impostos como IPTU e IPVA, mas outros tributos, como contribuição previdenciária e contribuição social sobre o lucro, não entravam nessa lista.

Isso começou a mudar em junho de 2020, quando David Soares propôs uma emenda ao projeto de lei do deputado federal Marcelo Ramos (à época no PL-AM) que ofereceria descontos ou negociações de dívidas a diversos setores durante a pandemia da covid-19.

O filho de R.R. Soares propôs incluir as igrejas nessa lista de beneficiados. Como se diz no jargão legislativo, foi um “jabuti”: a inserção de uma emenda sem relação com o PL original.

À época, David Soares argumentou que as autuações do Fisco tendem a inviabilizar “relevantes serviços” prestados pelas instituições. Segundo ele, a mudança permitiria “reduzir a judicialização e até mesmo o gasto equivocado de horas de trabalho do Fisco com entidades religiosas”, escreveu na emenda.

Em setembro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei, mas vetou a emenda proposta por David Soares. Se não o fizesse, poderia ser acusado de crime de responsabilidade fiscal e até sofrer abertura de processo de impeachment.

“O presidente Jair Bolsonaro se mostra favorável a não tributação de templos de qualquer religião”, informou o governo federal à época. “Porém, a proposta do projeto de lei apresentava obstáculo jurídico incontornável, podendo a eventual sanção implicarem [sic] crime de responsabilidade.”

No Twitter, no entanto, Bolsonaro deixou claro que estava vetando a emenda a contragosto e que, caso fosse deputado ou senador, votaria pela derrubada do próprio veto presidencial.

Em março de 2021, 439 deputados federais e 73 senadores derrubaram o veto de Bolsonaro e votaram “sim” para o ajuste na lei.

10 MIL CNPJS:

Dados obtidos pelo UOL indicam que, em dezembro de 2020, a Receita Federal já havia suspendido a cobrança de R$ 538 milhões em impostos de organizações religiosas.

Doze meses depois, com a nova lei em vigor, a suspensão saltou para R$ 924 milhões. Em abril deste ano, chegou a R$ 1,2 bilhão.

Inicialmente, a reportagem pediu dados de cobranças canceladas de 2012 a 2022, mas o órgão só respondeu com informações de 2020 a 2023. Num segundo pedido de LAI, apenas sobre 2018 e 2019, a Receita informou que não há dados disponíveis.

Do valor anistiado até 2023, 34% correspondiam a pagamento de contribuições previdenciárias e 12% de CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido).

Quem deve à Receita Federal e não paga vai parar na lista de devedores da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), que cobra os inadimplentes.

A PGFN diz não conseguir identificar quais igrejas foram beneficiadas pela nova lei.

Entretanto, via LAI, o órgão encaminhou à reportagem uma planilha que indica que o valor suspenso mais que dobrou.

Foi de R$ 23 milhões, entre 2012 e 2020, para R$ 47 milhões entre 2021 e 2022.

Há mais de 30 mil CNPJs cadastrados como organizações religiosas. Entre eles, aproximadamente 10 mil têm dívida ativa com a União.

Cerca de 70% das dívidas ativas estão concentradas em cinco CNPJs: duas igrejas “fantasmas” (o Instituto Geral Evangélico, do Rio, e a Ação e Distribuição, de São Paulo) e três igrejas famosas — além da Internacional da Graça de Deus, de R.R. Soares, estão a Igreja Mundial do Poder de Deus, do pastor Valdemiro Santiago, e a Convenção das Igrejas Evangélicas Assembleias de Deus no sul do país.

ALVO DO FISCO:

O advogado José Maurício Conti, professor de direito financeiro na USP, entende que a lei que isenta igrejas do pagamento desses impostos é ilegal.

“Ela foi aprovada [pelo Congresso] sem preencher os requisitos de responsabilidade fiscal.”

O auditor Flávio Prado, diretor do Sindifisco (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) de Santos, pondera que “a maioria [das igrejas] é séria e paga tributos direitinho”, mas há abusos quando se trata de isenção.

“Se você, igreja, pagar para a subsistência de um sacerdote, padre ou pastor, você não precisa pagar contribuição previdenciária. Mas é subsistência, não salário. Se você paga um valor para o sacerdote A, você não pode pagar 20 vezes o valor para o sacerdote B sem uma justificativa. Para a Receita, isso configura abuso”, completa.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com a Internacional da Graça de Deus. Em 2009, a igreja de R.R. Soares foi autuada por variação de até 2.000% na “prebenda pastoral”, dinheiro que o religioso recebe para seu sustento.

O UOL apurou que a média para um pastor no Brasil é de R$ 3.000 hoje. Considerada a variação de 2.000%, a “prebenda pastoral” na igreja de R.R. Soares seria de até R$ 63 mil.

O processo se arrastou até 2016, quando o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) julgou que, dada a diferença de valores que nunca foi explicada ao Fisco, a Internacional da Graça de Deus precisaria pagar a contribuição, sim.

Com a nova lei, ela e outras igrejas ficaram isentas de cobranças desse tipo.

FUTURO A DEUS PERTENCE:

Se, no curto prazo, a Lei 14.507 já pode ter neutralizado a cobrança de mais de R$ 1 bilhão em impostos, no médio prazo ela pode afetar a cobrança de dívidas antigas.

Isso porque ela tem efeito retroativo e pode atingir cobranças pré-2020.

No longo prazo, a nova lei pode levar, inclusive, igrejas a reivindicar a restituição de tributos pagos no passado.

Em outras palavras, abre-se uma brecha para que elas peçam reembolso. “Vai ter muita discussão judicial sobre isso”, afirma o advogado Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, que foi procurador-geral adjunto da PGFN e consultor-geral da União.

Fontes da Receita Federal concordam com o diagnóstico.

Essa não foi a última vez em que as igrejas tentaram se livrar de impostos.

Em março de 2023, o deputado federal Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, propôs uma PEC que pretende blindar templos de qualquer imposto sobre aquisição de bens e prestação de serviços.

No fim de setembro, a proposta passou pela CCJ e, agora, deve ser analisada por uma comissão especial. Entre os coautores está David Soares, o mesmo da emenda que garantiu uma anistia bilionária às igrejas.

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Os dados inéditos da Receita Federal foram obtidos pelo UOL via Lei de Acesso à Informação.

Trata-se de tributos como contribuição previdenciária e contribuição social sobre o lucro, que deixaram de ser cobrados das igrejas após uma mudança na Lei 14.057.

O articulador do ajuste foi o deputado federal David Soares (ex-DEM, atual União Brasil), filho do pastor R.R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus.

A lei tem impacto retroativo e, no médio prazo, pode levar à anistia de dívidas antigas — entre elas, cifras milionárias como a da Graça de Deus.

Ela é uma das cinco maiores organizações religiosas devedoras de impostos à União. Hoje, a dívida ativa da igreja é de R$ 89 milhões.

Devido ao sigilo fiscal, a Receita revelou apenas os valores totais e os tipos de impostos que foram “anistiados”, mas não os CNPJs diretamente beneficiados com a lei.

David e R.R. Soares foram procurados pelo UOL por telefone e por email em diversas ocasiões, mas não retornaram os pedidos de entrevista.

A Constituição já isenta organizações religiosas do pagamento de impostos como IPTU e IPVA, mas outros tributos, como contribuição previdenciária e contribuição social sobre o lucro, não entravam nessa lista.

Isso começou a mudar em junho de 2020, quando David Soares propôs uma emenda ao projeto de lei do deputado federal Marcelo Ramos (à época no PL-AM) que ofereceria descontos ou negociações de dívidas a diversos setores durante a pandemia da covid-19.

O filho de R.R. Soares propôs incluir as igrejas nessa lista de beneficiados. Como se diz no jargão legislativo, foi um “jabuti”: a inserção de uma emenda sem relação com o PL original.

À época, David Soares argumentou que as autuações do Fisco tendem a inviabilizar “relevantes serviços” prestados pelas instituições. Segundo ele, a mudança permitiria “reduzir a judicialização e até mesmo o gasto equivocado de horas de trabalho do Fisco com entidades religiosas”, escreveu na emenda.

Em setembro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei, mas vetou a emenda proposta por David Soares. Se não o fizesse, poderia ser acusado de crime de responsabilidade fiscal e até sofrer abertura de processo de impeachment.

“O presidente Jair Bolsonaro se mostra favorável a não tributação de templos de qualquer religião”, informou o governo federal à época. “Porém, a proposta do projeto de lei apresentava obstáculo jurídico incontornável, podendo a eventual sanção implicarem [sic] crime de responsabilidade.”

No Twitter, no entanto, Bolsonaro deixou claro que estava vetando a emenda a contragosto e que, caso fosse deputado ou senador, votaria pela derrubada do próprio veto presidencial.

Em março de 2021, 439 deputados federais e 73 senadores derrubaram o veto de Bolsonaro e votaram “sim” para o ajuste na lei.

10 MIL CNPJS:

Dados obtidos pelo UOL indicam que, em dezembro de 2020, a Receita Federal já havia suspendido a cobrança de R$ 538 milhões em impostos de organizações religiosas.

Doze meses depois, com a nova lei em vigor, a suspensão saltou para R$ 924 milhões. Em abril deste ano, chegou a R$ 1,2 bilhão.

Inicialmente, a reportagem pediu dados de cobranças canceladas de 2012 a 2022, mas o órgão só respondeu com informações de 2020 a 2023. Num segundo pedido de LAI, apenas sobre 2018 e 2019, a Receita informou que não há dados disponíveis.

Do valor anistiado até 2023, 34% correspondiam a pagamento de contribuições previdenciárias e 12% de CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido).

Quem deve à Receita Federal e não paga vai parar na lista de devedores da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), que cobra os inadimplentes.

A PGFN diz não conseguir identificar quais igrejas foram beneficiadas pela nova lei.

Entretanto, via LAI, o órgão encaminhou à reportagem uma planilha que indica que o valor suspenso mais que dobrou.

Foi de R$ 23 milhões, entre 2012 e 2020, para R$ 47 milhões entre 2021 e 2022.

Há mais de 30 mil CNPJs cadastrados como organizações religiosas. Entre eles, aproximadamente 10 mil têm dívida ativa com a União.

Cerca de 70% das dívidas ativas estão concentradas em cinco CNPJs: duas igrejas “fantasmas” (o Instituto Geral Evangélico, do Rio, e a Ação e Distribuição, de São Paulo) e três igrejas famosas — além da Internacional da Graça de Deus, de R.R. Soares, estão a Igreja Mundial do Poder de Deus, do pastor Valdemiro Santiago, e a Convenção das Igrejas Evangélicas Assembleias de Deus no sul do país.

ALVO DO FISCO:

O advogado José Maurício Conti, professor de direito financeiro na USP, entende que a lei que isenta igrejas do pagamento desses impostos é ilegal.

“Ela foi aprovada [pelo Congresso] sem preencher os requisitos de responsabilidade fiscal.”

O auditor Flávio Prado, diretor do Sindifisco (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) de Santos, pondera que “a maioria [das igrejas] é séria e paga tributos direitinho”, mas há abusos quando se trata de isenção.

“Se você, igreja, pagar para a subsistência de um sacerdote, padre ou pastor, você não precisa pagar contribuição previdenciária. Mas é subsistência, não salário. Se você paga um valor para o sacerdote A, você não pode pagar 20 vezes o valor para o sacerdote B sem uma justificativa. Para a Receita, isso configura abuso”, completa.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com a Internacional da Graça de Deus. Em 2009, a igreja de R.R. Soares foi autuada por variação de até 2.000% na “prebenda pastoral”, dinheiro que o religioso recebe para seu sustento.

O UOL apurou que a média para um pastor no Brasil é de R$ 3.000 hoje. Considerada a variação de 2.000%, a “prebenda pastoral” na igreja de R.R. Soares seria de até R$ 63 mil.

O processo se arrastou até 2016, quando o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) julgou que, dada a diferença de valores que nunca foi explicada ao Fisco, a Internacional da Graça de Deus precisaria pagar a contribuição, sim.

Com a nova lei, ela e outras igrejas ficaram isentas de cobranças desse tipo.

FUTURO A DEUS PERTENCE:

Se, no curto prazo, a Lei 14.507 já pode ter neutralizado a cobrança de mais de R$ 1 bilhão em impostos, no médio prazo ela pode afetar a cobrança de dívidas antigas.

Isso porque ela tem efeito retroativo e pode atingir cobranças pré-2020.

No longo prazo, a nova lei pode levar, inclusive, igrejas a reivindicar a restituição de tributos pagos no passado.

Em outras palavras, abre-se uma brecha para que elas peçam reembolso. “Vai ter muita discussão judicial sobre isso”, afirma o advogado Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, que foi procurador-geral adjunto da PGFN e consultor-geral da União.

Fontes da Receita Federal concordam com o diagnóstico.

Essa não foi a última vez em que as igrejas tentaram se livrar de impostos.

Em março de 2023, o deputado federal Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, propôs uma PEC que pretende blindar templos de qualquer imposto sobre aquisição de bens e prestação de serviços.

No fim de setembro, a proposta passou pela CCJ e, agora, deve ser analisada por uma comissão especial. Entre os coautores está David Soares, o mesmo da emenda que garantiu uma anistia bilionária às igrejas.

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